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Passe de preto velho

2 min readFeb 5, 2025

Crônica de preto velho

O telefone tocou, aquele som estridente de telefone antigo. Era minha avó chamando para tomar o passe com o preto velho de Dona Eurídice. Minha avó ia na frente para tomar conta da casa e conduzir a fila. Eu tomei banho, coloquei um roupa clara, ajudei minha irmã a ser arurmar e lá fui. Fiquei no corredor estreito da casa dela, sentindo o cheiro da fumaça do cachimbo. Eu e minha irmã, ambas miúdas, ficamos de conversa fiada, sendo logo interrompidas pela minha avó.

A fila de atendimento parecia eterna: povo entrava lá e ficava falando da vida inteira. Eta gente com problema. Preto velho parecia até doutor ou psicólogo. Minha avó me chamou atenção de novo: “cala a boca menina, que já chega tua vez”. Achava aquilo tudo engraçado e cheio de mistérios. Dona Eurídice era um senhora grosseira, mas tinha um sorriso de paz, engraçada. Vivia uma vida simples em uma casinha no fundo de uma vila. Na casa dela tinha um filtro de barro, café preto e cheio de cachimbo, sempre tinha esse cheiro lá. No entanto, que lugar de paz era aquele.

Eu escutava os pontos sendo cantados e a fila de atendimento andando, até que chegava a minha vez. Preto velho me baforar o cachimbo, perguntava como eu estava na escola, se obedecia a minha mãe. Sempre dizia que eu deveria estudar. “Vossuncê precisa se distrair menos, estudar mais, ter calma. Sua mãe é mulher de força e você herdou essa força dela. E sua coroa, essa da sua cabeça, brilha forte.” Ele deu uma baforada do cachimbo, puxou meus dedos das mãos, passou as mãos pelo meu corpo e limpou tudo.

Eu fiquei imaginando quanto mais precisava estudar: matemática era dificil demais, português sempre gostei. E onde estava a tal coroa, que eu não via? E antes que eu fosse embora, ele disse: “Vossuncê é menina boa, de bom coração, siga fazendo o bem que será recompensada.” Sai de lá pensando com vontade abraçar o preto velho ou mesmo com vontade de chorar, mas aguentei firme. Pisquei para minha irmã e disse: vai que tá fácil.

Carla Pepe

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Carla Pepe
Carla Pepe

Written by Carla Pepe

Carioca, Poeta, feminista, mãe de uma menina. Pisciana com ascendente em Touro, Lua e Vênus em Áries. Formada em Historia, Mestre em Saúde Pública.

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